Havia um miúdo perto das docas, entre uns quantos como ele. Ele distinguia-se dos miúdos das docas: estava descalço como alguns dos outros, tinha uma camisa apesar dos outros terem todos umas camisolas roídas; a diferença estava nos olhos: o miúdo tinha uma missão.
Brinca miúdo, passeia esses pés descalços, escava o interior da tua mente antes que ela se vire contra ti.
A Lua chega cedo, ainda durante o dia, partilhando com o Sol um rectângulo limitado de céu. Chega a miúda e o miúdo vê-a, seus olhos inocentemente felizes como só os de um miúdo podem ser. Trocam umas palavras, o miúdo e a miúda. Ela veio calçada, e tem um vestidinho da mesma cor que a camisa dele. Dão as mãos e avançam para o cais.
Cheira a mar cansado; cansado de si e cansado de ser usado; está a precisar de uma longa noite de descanso, o mar. Os dois miúdos avançam pela madeira do cais até pararem defronte a um barco. O barco é negro, seus contornos misturar-se-iam com a noite mas o Sol ainda brilha numa aresta de Céu. Olham-se e adivinham que vão mesmo fazê-lo. Do nada, está à sua frente o Barqueiro, Pálido e Imberbe, que lhes fala com uma voz que nada tem a ver com ele, por ser calma e marsupial, e lhes diz: Crianças, não está na hora de irem para as vossas casas? Decerto os vossos pais já se perguntam por vós...
É ela quem responde: Mas senhor, nós queremos ir no barco.
O Barqueiro Imberbe e afável, com o pôr-do-sol lunar nas costas, olha-os como se fossem sobrinhos. Ele sabe que tem de os deixar entrar, essas são as regras do jogo, mas não quer quebrar os miúdos, cuspir-lhes na infância e assassinar seus sonhos. Ooh, os sonhos... Dissuadir, é o que vou fazer, pensa o Imberbe: Não sejam tolinhos, toca a ir embora! Era estranho, ele era magro e esquelético, pálido, imberbe, e vestia de negro com um fato que talvez tivesse sido impecável há anos. [Só há anos?] O negro realçava a sua palidez. Mas em vez de uma voz cavernosa e demoníaca, ou arrastada e moribunda, ou louca e esqueletal, tinha uma voz paternal e suave e ingénua, como se mantivesse a sua infância viva nalgum recanto obscuro da sua massa óssea. Não lhe assentava esta voz, ou melhor, seria a única coisa que verdadeiramente lhe assentava, que este Imberbe tem bom coração.
Mas os miúdos insistiram, queriam ir juntos, queriam viver no mar que na terra não gostavam, e o Pálido Imberbe teve que os deixar entrar, eram as regras do jogo.
Tantos anos antes, um homem vestido de negro tinha também aceite um miúdo a bordo. Um miúdo ridiculamente pálido. A esse não tinha sido dado nenhum aviso. Agora, o Barqueiro Pálido e Imberbe chora com as pernas pálidas mergulhadas no mar velho, a Lua dominando completamente o mesmo rectângulo de céu que vira chegar este negro barco. Um destes dias é a Lua Cheia, pensa o Barqueiro, fitando a Lua e deixando a sua palidez misturar-se com a dela. Como gostaria de ser a Lua.
Quando o barco partir nunca mais cá voltarão. Só ele, o barqueiro, vem a terra quando o barco infernal, que se alimenta de sonhos, aporta num qualquer cais. Como é que dois miúdos abdicam dos seus sonhos assim? Sem sonhos, os miúdos serão apenas almas penadas condenados a uma vida na maresia. Ter-se-ão apenas um ao outro para apoiar as costas, quando forem eles contra o Mundo. O Imberbe nem isso teve.
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