Ah, homem, nó cego de cristal com medo de se riscar.
Ah, estátua de marfim com medo de se rasgar.
Ah, vinho de Midas com medo de evaporar.
Ah, medo, perdão, homem...
Um cavaleiro sem cabeça cavalga um cavalo sem patas. Ninguém, repito, ninguém vive sem cabeça. Quanto a cavalos não sei, este cavalga sem patas.
Mas a Morte não passou pelo cavaleiro sem cabeça; na verdade, evita-o a todo o custo nas suas viagens rotineiras, evita cruzar-se com ele, evita a sua visão longínqua e o seu odor a viscoso. Quanto ao cavaleiro, esse, está riscado, nos bordos do pescoço pálido de marfim, rasgados por alguns centos de fábulas; notam-se crostas de sangue nojento e coagulado onde se acumularam poeiras dos séculos passados num nomadismo em nada boémio. Por dentro, salta à vista o cheiro nauseabundo da carne esverdeada do seu pescoço muscularmente decepado. A sua montada estropiada mostra uma pelagem salpicada por manchas, minto, crostas de sangue e imundície vertidas pelo tão querido e literalmente desmiolado amo.
Ah, mas que faz este cabeceta riscando as páginas deste caderno?
Habita meus pesadelos colado a mim, em meus sonhos fazendo-se notar apenas ao longe. O sem-cabeça, sem a qual não se pode viver, garantiram-me!, continua a aparecer onde antes eu via uma casa, onde estava um limoeiro, onde em tempos esteve um amigo. Surte nos figurantes do meu subconsciente um pânico irreal, induzindo-lhes instantaneamente a queda maçãnica da gravidade, um tombo que os verte nos degraus superiores da existência. Isola-me, sem cenários nem iluminações no único local onde não sei entrar nem sair, evapora qualquer guião, e empurra-me para o chão. O sem-cabeça e seu potro amareloso atropelam-me, pisoteiam-me, cospem-me e babam-me e despenteiam-me. Dá cabo de mim, que grande desafio que esse é. Faz-me chorar sonhos arquivados de quando os coleccionava como cromos. Vai cantando, como não sei. Cânticos de um guerreiro sem rumo e sem preço, um tão longo que se esfumou e outro tão elevado quanto uma cabeça o pode ser. Brinca ao berlinde como o miúdo que é, miúdo em tamanho grande, berlindes em tamanho grande. Berlindes? Cabeças. De inimigos quedos, vítimas inocentes, eu sei lá, e ele não deve saber também. Volta-se de lado mas sei que me olha. Reúno todas as forças do meu corpo, do meu sonho, para suster aquele olhar sem olhos, e não fujo, até porque não há cenário neste sono, ele atmosferizou tudo, e tudo caiou de preto, um preto tão preto que nem preto é: é morte, cor de morte. Mas a Morte não cavalga junto do cavalo tetraperneta. Não, não é morte este sonho. Este sonho é a sua ausência, sua negação. Ausência de sonho, tortura da mente. É a cor do fundo, do chão, do céu, das nuvens, se as houver. O cabeceta atira para mim um dos seus macabros berlindes, que apanho, ficando a fitar uma nuca no meu regaço. Viro-a. Acordo num grito seco. Não há olhos fitando os meus. Há um momento atrás havia, há um momento atrás fitava meu próprio esgar de decepado.
Ah, estátua de marfim com medo de se rasgar.
Ah, vinho de Midas com medo de evaporar.
Ah, medo, perdão, homem...
Um cavaleiro sem cabeça cavalga um cavalo sem patas. Ninguém, repito, ninguém vive sem cabeça. Quanto a cavalos não sei, este cavalga sem patas.
Mas a Morte não passou pelo cavaleiro sem cabeça; na verdade, evita-o a todo o custo nas suas viagens rotineiras, evita cruzar-se com ele, evita a sua visão longínqua e o seu odor a viscoso. Quanto ao cavaleiro, esse, está riscado, nos bordos do pescoço pálido de marfim, rasgados por alguns centos de fábulas; notam-se crostas de sangue nojento e coagulado onde se acumularam poeiras dos séculos passados num nomadismo em nada boémio. Por dentro, salta à vista o cheiro nauseabundo da carne esverdeada do seu pescoço muscularmente decepado. A sua montada estropiada mostra uma pelagem salpicada por manchas, minto, crostas de sangue e imundície vertidas pelo tão querido e literalmente desmiolado amo.
Ah, mas que faz este cabeceta riscando as páginas deste caderno?
Habita meus pesadelos colado a mim, em meus sonhos fazendo-se notar apenas ao longe. O sem-cabeça, sem a qual não se pode viver, garantiram-me!, continua a aparecer onde antes eu via uma casa, onde estava um limoeiro, onde em tempos esteve um amigo. Surte nos figurantes do meu subconsciente um pânico irreal, induzindo-lhes instantaneamente a queda maçãnica da gravidade, um tombo que os verte nos degraus superiores da existência. Isola-me, sem cenários nem iluminações no único local onde não sei entrar nem sair, evapora qualquer guião, e empurra-me para o chão. O sem-cabeça e seu potro amareloso atropelam-me, pisoteiam-me, cospem-me e babam-me e despenteiam-me. Dá cabo de mim, que grande desafio que esse é. Faz-me chorar sonhos arquivados de quando os coleccionava como cromos. Vai cantando, como não sei. Cânticos de um guerreiro sem rumo e sem preço, um tão longo que se esfumou e outro tão elevado quanto uma cabeça o pode ser. Brinca ao berlinde como o miúdo que é, miúdo em tamanho grande, berlindes em tamanho grande. Berlindes? Cabeças. De inimigos quedos, vítimas inocentes, eu sei lá, e ele não deve saber também. Volta-se de lado mas sei que me olha. Reúno todas as forças do meu corpo, do meu sonho, para suster aquele olhar sem olhos, e não fujo, até porque não há cenário neste sono, ele atmosferizou tudo, e tudo caiou de preto, um preto tão preto que nem preto é: é morte, cor de morte. Mas a Morte não cavalga junto do cavalo tetraperneta. Não, não é morte este sonho. Este sonho é a sua ausência, sua negação. Ausência de sonho, tortura da mente. É a cor do fundo, do chão, do céu, das nuvens, se as houver. O cabeceta atira para mim um dos seus macabros berlindes, que apanho, ficando a fitar uma nuca no meu regaço. Viro-a. Acordo num grito seco. Não há olhos fitando os meus. Há um momento atrás havia, há um momento atrás fitava meu próprio esgar de decepado.
25-05-2010
2 comentários:
não te conhecia tão negro... e deliciou-me, fidos, quero mais disto =)
confesso que estou demasiado cansada para ter lido.mas tenho saudades tuas.
um beijo amor meu
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