Bonfires by the beach. Tribal. Rave costeira. Alucinam juntos. Dançam nus. Tocam tambores. Começa a chover.
E, num momento, deixa de ouvir os tambores; num momento percebe que vai ser descoberto; num momento todo o medo do mundo se concentra num ponto à sua frente e como que lhe parte as pernas, e ele verga-se meio morto sob a sua consciência: vão descobrir o seu segredo se ficarem à chuva.
Chove.
Continua a dança. Tribal.
Dançam nus entre grãos de chuva, sementes de algum deus maior que pelas leis dos antigos estará a tentar fecundar novamente a Mãe Terra, tentando corrigir este erro que a povoa.
Dançam entre os deuses.
Lantejoulas afiadas caem-lhes em cima. Parece que os deuses estão mesmo a tentar corrigir os erros do passado.
No início, são gotas laminadas, cortantes. Mas à medida que caem cortam o sangue aos banhistas, e vão-se vestindo com ele, competindo umas com as outras em número de cortes feitos, número de sangues vestidos.
E eles sangram, e sangram.
O estrangeiro dança enquanto sangra um líquido espesso e verde.
O soldado sangra púrpura, completamente cortado nos braços e no peito.
O casal jaz nalgum lado, preso num beijo sanguinolento: ele sangra amarelo, um fio gotejando da têmpora a traçar-lhe a cara; ela sangra azul, um azul muito claro, e sangra tanto que à volta deles se parece chover um mar coralino.
O vagabundo também sangra, e sangra em tons de castanho e laranja.
Os estudantes sangram azul profundo e verde hipócrita, as putas azul profundo e rosa interesseiro.
E, vendo-os a todos, ele vai dançando, nu como eles, e vai-se esquivando às lâminas vítreas que caem do céu. E continua, saltando entre chuvas, e salpicando os pés com sangues.
De repente, pisa uma poça de vidros no chão, mesmo ao pé de um estudante drogado, deitado contra um tronco, jorrando copiosamente verde e com a cara parabolicamente virada para cima, presa num sorriso.
Cortou-se na planta do pé.
E bastou um segundo sem dançar, um segundo sem o acordar adrenalítico e constante do medo, um segundo em que o seu pé foi mais importante que o seu segredo: um segundo de pausa, e choveu-lhe na face. E no braço. E agora na barriga. Vê como se de relva a crescer se tratasse: um vidro triangular e afiado a passar-lhe obiquamente, cortando-o sob as costelas, na direcção do umbigo. E enquanto corta a carne tenra do seu ventre, surge um líquido à superfície, numa tonalidade...branca? Branca...
O seu segredo revelado.
Ele, como outros (já queimados) antes dele, e outros depois, sangra branco. Um pecado que os deuses apreciam, porque os cortes não lhe doem. Mas que os terráqueos, coloridos sanguíneos, castigam. O estudante drogado e despido vê-o, vê-o e sorri. Ele cai de joelhos, entregue ao seu destino. Mas o estudante só sorri, drogado e despido e estuporado. Toca na poça de sangue branco, molha o dedo nele, como é sedoso este sangue! Leva o dedo à boca, molhando os lábios com o sangue albino do medroso aberrante, entregue ao medo. Ele vê-se, cortes brancos sobre a pele de tijolo que o deserto lhe dera, de joelhos, no escuro. Sente um foco de luz sobre ele e sabe que é o medo. E decide sair das trevas.
Ergue a cabeça. Chove à sua volta, mas muito menos. O aguaceiro vai acabar, e quando isso acontecer já cá não estará. Segura nas mãos a cabeça do estudante drogado, despido, estuporado e sorridente; afaga-lhe o cabelo negro. Beija-o na boca e surpreende-se com a correspondência. Beija-o na boca e surpreende-o com um estilhaço na jugular. Deita-o de costas, limpando as mãos sujas de verde e azul e branco, e foge a correr, nu e manco. Soubera proteger o seu segredo
(13/06/2011)